De longe já dava para vê-lo sentado ao poço. Preferia que não estivesse lá, como nos outros dias. Venho aprendendo a escolher lugares e horas que me ajudem a ficar só. Aquele poço e sua distância de tudo e todos, aquela hora e seu sol a pino traziam menos desgaste que esbarrar naqueles, quaisquer que fossem, cujos olhares espelhassem o pior de mim.
A aproximação acrescentou um dissabor, não bastasse alguém atrapalhar minha solidão, agora ficava evidente que o homem perto do poço era um judeu. Os babados da sua roupa de bom judeu anunciavam um daqueles que se crêem puros a despeito de nossa impureza. Nada é mais opressor que se enxergar tão estranha e detestável nos olhos de quem quer que seja.
Ao poço, o inusitado mostrou a face. Antes que pudesse deixar nítida minha pressa e indiferença, pediu-me água. Eu sei que a cortesia mínima não rejeita água sequer ao inimigo, mas não soube disfarçar minha amargura. Neguei-lhe e lembrei-lhe o óbvio, era homem e eu, mulher; era judeu e eu, samaritana. Fronteiras fortes o suficiente para que nem a mais sofrida angústia licenciasse o encontro. Nenhum preconceito é tão cruel que não possa servir a uma doentia e útil comodidade.
Ainda assim não me livrei do peregrino. Insistiu, apesar da cara de fadiga e dos lábios ressecados, e advertiu-me de estar desperdiçando uma grande chance. Falou-me da água de um jeito estranho. Não tive certeza se tentava me propor um enigma, como fazem os mestres e profetas, ou se de fato conhecia alguma água com poderes mágicos. Mas ofereceu uma água viva que resolveria a sede de uma vez por todas. Fiquei confusa. Não estou acostumada a esses devaneios, coisas de poetas e profetas, ou insanos. Sempre ali, icei baldes de água que, além de mal saciar minha sede, traziam o enfado de um serviço que nunca finda. Aos meus olhos, balde é balde, água é água, e gente nunca faz muito mais que trazer transtornos.
E mesmo depois de interromper o palavrório mostrando o absurdo de oferecer qualquer que fosse a água sem ter ao menos um balde, continuou a falar de tudo como se nada pudesse ser apenas o que sempre foi. Parecia falar de nada que já antes ouvi, como se tudo pudesse ter outra versão.
E falava como se fosse maior que aquele que cavara o poço, Jacó, nosso pai.
Falava como se palavras cavassem poços e baldeassem saciedade.
Talvez um poeta deslumbrado.
Sendo assim, aceitei a proposta da água viva e entrei na brincadeira. Dei ainda um certo tom de seriedade: ‘apenas para não ter mais o trabalho de ir ao poço’. Um silêncio e de novo aquele olhar insano de quem vê através das coisas e engendra o surpreendente. Eu, que queria não voltar ao poço de água, fui convidada por ele a voltar à origem da minha sede. Mandou-me buscar o marido, esse tipo de gente que primeiro abandona a imaginação, para depois abandonar a esperança e o amor.
A brincadeira perdeu a graça. A guinada da água para o coração causou-me vertigens. Lacônica, disse-lhe não ter marido. E não é que sequer esboçou surpresa? Nem um tom escrupuloso. Sabia de todos os maridos que tive e daquele que me toca, mas não me abraça. Senti meu rosto como um livro que se desenrola diante de um leitor. Seria eu tão evidente? Ou ele, um leitor habilidoso de gestos e olhares? Quem?
Poeta, sim. Louco? Com certeza e daqueles que a gente, atordoada, chama de profeta.
Alguém com versões tão diferentes do que a vida toda ouvi. Que fala estranhamente de tudo, mas com tanta graça. Que transfigura o óbvio e enxerga o avesso do que sempre me enfadou. E, sem pá, explora profundidades e, sem balde, baldeia com as palavras novos sentidos e embebe a vida de significados vários. Alguém assim pode me falar de Deus também com surpresa. Salvou-me da culpa de não ser amada, quem sabe salvará o divino do meu tédio?
Fala de Deus, poeta. Baldeia também o divino de outro poço, profeta. Porque tal como esta água, o que de Deus eu sei me angustia mais que sacia. Os samaritanos falam de um que é mais Deus em nosso templo que naquele de Jerusalém. Deus é só isso? Dos judeus ou dos samaritanos? De Jerusalém ou de Gerisim? Do templo que não me quer, ou que não me cabe? Dos homens e suas vaidades másculas e truculentas? Reiventa, poeta. Redescreve, profeta.
Bem naquela hora, uma brisa boa refrescou nossos rostos e a conversa, já tão tensa e grave. Ele, por um instante, pareceu esperar pelo sopro como um cantor aguarda o acorde da harpa. Como um poeta espera a metáfora que libertará a imaginação. Chamou o divino de vento. Desse que sopra selvagem e solto no deserto; desejado, mas indômito. Para além de qualquer estrutura, imprevisível, tão livre que apenas os que também anseiam pela liberdade podem encontrá-lo. Disse que Deus é vento e procura por quem, ao adorá-lo, também vai além dos edifícios e suas rígidas estruturas, tal qual o indomável e inventivo vento, e só assim o encontra de verdade.
Porque a verdade nunca é o que já se disse, mas o que está por dizer.
A verdade nunca é o que a brisa já deixou desenhado na areia, mas o vento que sempre está por soprar e redesenhar o chão de nossa existência.
Então? Vocês não querem vir e ouvi-lo? Ele (re)contou tudo o que tenho feito. Acho que é o Messias. Certamente não o que esperávamos. Mas o Messias. E eu, nossa! Esqueci meu cântaro lá, de tão lembrada que estou de tudo o que ainda posso ser.
Elienai Cabral Junior
31 comentários
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28/12/2011 às 9:53 pm
David Santos
Poxa vida…sem palavras.
MARAVILHOSO!!
29/12/2011 às 7:17 am
Roger
Amei.
29/12/2011 às 9:23 am
francijane (@francijane2)
Meu Deus!! como não chorar diante de tamanha sensibilidade para sentir a dor do outro! Elienai, você é especial. acredito que vc interpretou o que Jesus sentiu. Essa cena me comove muito porque antes mesmo de ser crente, no momento mais difícil de minha vida ela veio ao meu encontro numa madrugada de pranto. Essa água encheu minha alma.
29/12/2011 às 9:50 am
Olavo
De pé eu grito: BRAVO…BRAVO….
29/12/2011 às 11:19 am
Betesda Juazeiro
Uma boa dica de leitura pra este final de ano. Boa leitura!!!
29/12/2011 às 11:32 am
Rejane
Simplesmente MARAVILHOSO! Sensível, O doce toque de Jesus, no mais profundo de nós! Ameiiiiii!
29/12/2011 às 2:13 pm
Patricia Crepaldi
A visão de quem não teve voz. Sensivel e comovente.
29/12/2011 às 4:17 pm
rosivaldo dos santos
Muito bom,é as vezes o tudo passa despercebido diante do “nada”.Mas desta vez,não!
29/12/2011 às 5:43 pm
Aurea
Da mera letra, além…
É de Deus!
29/12/2011 às 7:50 pm
Paula
Paralisei que dádiva escrever assim!
29/12/2011 às 11:16 pm
Waldir Martins
Falar mais o que? Sensacional! Maravilhoso! Deus te abençoe mano.
30/12/2011 às 8:28 am
Luciana
Lindo texto!
Tenha um 2012 ainda mais inspirado e inspirador que 2011.
Um cheiro pra você e sua linda família!
30/12/2011 às 10:17 am
Max Walter (@Max_Walter)
Estou embasbacado de tamanha admiração por essa maneira de “reescrever” (não sei se esse seria o termo apropriado) o texto bíblico. Quiça isso aconteça mais frequentemente com demais passagens da Bíblia. Isso é, evidentemente, um sopro especial do divino que chega às mentes dos homens a Ele suscetíveis. Esse é um ar de renovação que através da reinvenção do texto sensibiliza os novos homens desses (e para os vindouros) novos tempos. Parabéns Elienai!!!
30/12/2011 às 11:06 am
Max Walter (@Max_Walter)
Desculpe-me o pleonasmo “embasbacado de admiração”! Foi a euforia em querer lhe parabenizar pelo maravilhoso texto. rsrsrsrsrs… Um abraço!
31/12/2011 às 8:37 am
Miecio Cordeiro
Muito bom, leve,vivo e verdadeiro.
Me lembrou que ainda pode ser bom viver!
01/01/2012 às 6:09 pm
Danbrennermoura
Não merece o título de texto, tamanha obra de arte!
Parabéns!
03/01/2012 às 2:33 pm
Tamara Cabral Soares
Mano, é lindo poder “ver” histórias tão conhecidas nossas que acabam passando desapercebidas através de suas palavras que enchem nossos olhos do amor de um Jesus tão próximo da gente. Te amo!!
14/01/2012 às 2:33 am
Jorge Baptista
Prezado Elienai Jr.
Muita paz!
Obrigado por mais um texto inspirador. Inspirador, pois me levou a reler o texto de João 4 e pude extrair dele linspiradas lições.
Sempre Em Cristo,
JORGE BAPTISTA
25/01/2012 às 6:39 am
Sociedade Arminiana em Língua Portuguesa
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30/01/2012 às 3:31 pm
Bruna Trevisan
Lindo texto! Quanta graça!
30/01/2012 às 8:42 pm
marcondes m tavares
pepeu gomes já dizia:”ser um homem feminino não fere o meu lado masculino”, para parafrasear o coração dessa mulher sutilmente oculto nesse belo texto, só tendo a sensibilidade de uma alma feminina.
simplesmente maravilhoso!!!!
31/01/2012 às 10:11 am
Elielma Cardoso
Elienai é incrivel as várias possibilidades de se enxegar,de degustar um texto.Parabens gostei muito.Deus o continue abençoando mais e mais!!!!
09/03/2012 às 1:27 pm
Mateus Gandini
Lindo, profundo, profético, poético e encantador.
Que belo texto, que visão de Cristo. É imaginar como João Alexandre: “Te vejo poeta…”
01/05/2012 às 10:58 am
samarone
Que coisa mais bela, que profundidade filosófica, teológica. Lindo d+
15/05/2012 às 9:04 am
Alexandre Araújo
Balde de lágrimas em meus olhos…
08/06/2012 às 9:45 am
Fernanda Borges
Deus ama o pior de mim…
07/08/2012 às 8:00 am
Hugo Rafael
Realmente lindo!
05/10/2012 às 6:06 pm
Daniel Santos
Não sei como deixei “escapar” esse texto, sem lê-lo antes. Fiquei maravilhado ao ouvi-lo lendo, na última terça. Bravo, amigo! Bravo!
17/10/2012 às 1:18 pm
Laion Monteiro
Um texto lindo? Não só; parte da minha história.
23/01/2013 às 12:26 pm
marilene de oliveira rossi
Maravilhoso,encheu-me de esperança,meus olhos estão marejados…..
25/01/2013 às 3:46 pm
celioplnto
Obrigado, esta reflexao me fez bem hoje.mi