Dos olhos ao olhar foi a travessia da qual desisti. Perigosa e frustrante como o caminho que se percorre entre Jericó e Jerusalém. Neste, parei à beira da correria, e nunca mais fui a uma, nem voltei a outra. Uns diziam que eu vivia à saída de Jericó; outros, à entrada. Restei ali, nem partindo nem chegando, no ponto cego do mundo, na invisibilidade do desprezo, no sem-lugar de um homem.
Já tive olhos arregalados, gulosos de compreensão e valor. Olhava para me ver no mundo, para saber de mim nos olhos de toda a gente. Olhar bem é cruzar olhares.
Não nasci cego, fui desistindo de ver e não ser visto; sendo convencido da minha transparência, a de quem está ali, mas não importa.
Desconfio porquê. Meu pai tinha o nome do nosso infortúnio, Timeu, o Contaminado*; vivia sob a desgraça que fez dele um matável. Tinha a doença da pele, a lepra. Ele era um impuro de cuja vida se deve abrir mão para a paz de todos.
Perdi meu pai de vista, nunca mais soube dele, degredado de Jericó; a maldição da pele o transformou em um intocável, alguém que se deve manter longe. Morreu em vida. Expurgado, tornou-se indigno do luto. Que importância terá a morte de quem já é um nada?
Fui descobrindo que Bartimeu, o Filho do Contaminado, foi o nome que deram a minha desimportância. A pobreza da nossa família confirmava a contaminação do meu pai, sem trabalho, sem oportunidade, sem dinheiro, sem comida; com a família endividada, vi meus irmãos e, finalmente, minha mãe, um a um, sendo tomados como escravos em pagamento das promissórias. Sobrei com a estranha doença nos olhos que me livrou do trabalho escravo.
Quanto menos me via nos olhos de todos, mais fechavam os meus e a minha fé e as minhas queixas e o meu mundo; meus olhos ardiam e coçavam e uma lágrima viscosa e com cheiro de morte escorria, se insistisse em mantê-los abertos; mas sossegavam quando os fechava cansados e sujos. Não lembro quando, mas uma crosta foi definitiva, fechou minhas vistas e me convenceu de que não valia mais a pena abri-las.
No ponto cego, resta a sobrevivência, uma vida nua, despida de desejos; a vida mendicante de quem sequer tem a força da angústia para se matar. Alguém assim aceita comer o que resta dos que vivem de verdade, cobrir-se dos trapos que não vestem mais uma vida boa e abençoar esmolas para que os demais sigam em frente.
No ponto cego, no entanto, quanto mais se é ignorado, mais se sabe de tudo; ouço o barulho que a todos ensurdece, os ruídos da vida apressada demais para prestar atenção, os cheiros desenham o cenário de vidas esgotadas, as vozes entonam pavores e ambições, desgostos e ânsias.
As pessoas me contam histórias porque não vejo e eu imagino nas mesmas histórias o que elas deixaram de ver.
Às vezes acho que enxergo mais e melhor. Às vezes acho que vejo o que ninguém consegue ver. Às vezes acho que só o cego, do ponto cego, pode ver o que realmente está acontecendo.
Das histórias que ouvi, as do Nazareno eram as que mais ocupavam minha mente. Nunca disse a ninguém, mas sempre que pensava em um Messias, um filho de Davi, ungido para salvar a nossa pele, pensava em alguém que faz o que ninguém faz, que discorda do que todos pensam; um filho de Deus não poderia ser a confirmação do que essa gente convicta de tão ressentida acredita. Teria que ser um susto. Se não, eu permaneceria ali, condenado à inexistência.
Contavam da multidão que ele alimentou no deserto; do amigo em Betânia que tirou de dentro do sepulcro; do vinho de melhor qualidade que serviu na festa, quando todos achavam que só restara água. Mas para a patética decepção da maioria, ele era flagrado em más companhias. Publicanos, samaritanos e prostitutas, gente de quem um cidadão de bem não chegaria perto, ele se divertia em suas casas, comendo e bebendo com eles. Certo dia, um fariseu insinuou com voz maldosa, você divide a mesa com quem sente prazer, ninguém ficaria tão à vontade perto dessa gente se não se parecesse com eles.
Não bastasse ganhar a fama de fanfarrão, contaram que um fariseu testemunhou uma cena escandalosa com uma mulher mal falada. Ela teria se despedido de Jesus com favores que uma prostituta só oferece a clientes muito especiais, derramando um perfume valioso sobre ele, dançando e acariciando sua pele com os cabelos. Há quem afirme que ela é o grande amor da sua vida.
O escriba disse outro dia que o tal do novo rabi também era um contaminado, que tocava e se deixava tocar por leprosos e por mulheres que nunca param de sangrar. E as mulheres dessa terra nunca param de sangrar. Disse também que seus discípulos eram estimulados a comer no dia do jejum e, esfomeados, ignoravam a purificação antes dos alimentos. E o pior, ele teria ensinado que a reunião alegre de amigos é mais santa que o sábado dos piedosos e a santificação é feita pelo prazer, não por sua renúncia.
Contavam essas histórias e eu me arrepiava. Eu amava o que eles odiavam. Alguém assim seria a pessoa mais divina que eu poderia conhecer. Vendo os que ninguém vê, ouvindo aos que ninguém ouve, tocando os desprezados como eu. Alguém que veio trazer um reino onde o que contamina a vida não é uma pessoa e seus fracassos, mas o olhar que aprisiona o outro no nojo. No reino do meu rei, do Filho de Davi conforme imagino, impuro é tratar a desigualdade entre pessoas com piedosa normalidade.
Eles descreviam um escândalo, eu imaginava uma salvação; eles descriam dos milagres por causa das suas subversões, eu tinha esperança porque para mim o único milagre que pode mudar o mundo é importar-se com os esquecidos; eles o viam cercado pelo inferno, eu, o cego, o imaginava com o céu debaixo dos pés.
Com suspeitas, eles só viam um nazareno, mas eu iludia a passagem dos dias sonhando que ele era o Filho de Davi e que a qualquer dia desses eu o encontraria e lhe diria tudo o que um cego consegue perceber.
Minha pele estava quente do sol de um dia inteiro, na boca um gosto de sangue de quem tem que gritar para se fazer ver; quem tinha que chegar ou partir não passava mais, os poucos atrasados apressavam os passos e no lugar das esmolas deixavam um bocado de poeira.
Uma pessoinha se aproximou e ficou em silêncio. Com voz de mãe, uma mulher apavorada pedia que a filha não me tocasse. A menininha colocou na minha mão uma cuia com o leite mais doce que já tomei na vida. Agradeci, enquanto pude, pois já a arrastavam irritados com a criancice. Mas ainda a ouvi dizer, ele está com fome. Pensei que ela se parecia comigo, via o que todos desaprenderam a enxergar. Suspirei contente.
O chão começou a trepidar e o barulho de tropel das multidões avisou o inesperado. Alguém especial estava se aproximando. Em poucos minutos muita gente de Jericó voltou à estrada e outros tantos pareciam vir de Jerusalém e se misturaram ali. Agarrei as pernas de um dos apressados e implorei para saber quem era esse que passava. Para se livrar de mim, menosprezou, o Nazareno. O nome desdenhoso que davam a quem eu imaginava feito um Deus. A quem, em segredo, eu chamava de Ungido, de Filho de Davi.
Não dava para saber onde ele estava, se longe ou perto, à esquerda ou à direita. Eu só precisei gritar uma vez para que aqueles que nunca me ouviam prestassem atenção. Filho de Davi, tem misericórdia de mim! Não lembro a última vez que me tocaram, mas dessa, foi tentando tapar a minha boca. E me advertiram que não dissesse uma coisa insana daquelas. Alguém xingou, você é cego, não louco. Outro resmungou e riu pela contradição, não vê que é só o Nazareno? Sacudi a cabeça e me livrei das mãos que pediam o meu silêncio.
Eu dizia o que eles não queriam ver.
A cada vez que teimava em gritar, pensava aleatoriedades.
Filho de Davi!
É difícil enxergar o que aprendemos a não ver para seguir em paz.
Filho de Davi!
Algumas coisas ficam invisíveis, de tão visíveis.
Filho de Davi!
Como ver o divino em alguém demasiado humano?
Gritei pela última vez e antes que me chamasse e eu fosse levado até ele, concluí, eu sou a ironia, o cego que enxerga o que todos aprenderam a não ver.
O tempo parou e os espaços se rearrumaram. Eu gritei e fiz aparecer quem ele nunca deixou de ser. Ele me viu e eu voltei à existência. Ele pediu e fui levado até ele.
Do ponto cego ao ponto da questão.
Tão perto, meu corpo todo o imaginava. Senti seu hálito e o cheiro era de sangue, como o meu, também ele tinha que falar muito e mesmo assim não ser visto. Também ele estava no ponto cego, entre o messias milagroso e o homem de dores. Entre o rei poderoso e o servo sofredor.
Sua pergunta foi tão retórica quanto irônico foi o nosso encontro. O que você quer que eu te faça?
A menininha reapareceu. Outra cuia com leite nas mãos. Ele a tomou no colo e ela insistiu docemente para mim, não vai responder?
Minha resposta foi o clamor que estava nos olhos de todos ali.
Voltar a ver.
(*Bartimeu, filho de Timeu, como O Evangelho Segundo Marcos informa. O nome pode ter origem no aramaico timai, “contaminado” – André Chouraqui, A Bíblia, Marcos).
Deixe um comentário
Comments feed for this article