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A vida dançante é a chance de curar uma gente enfadada,

Estatelada no meio do salão, de tanto desencanto.

É dança a vida que reembala a fé popular,

que leva o cansado a transcender o tédio,

que reboleia as palavras quando tudo silencia insosso

Refolia é a arte do Salvador

Ele faz cirandar palavras,

desejos,

fé,

amores,

quimeras,

fantasias

e sara nossa imaginação cansada

Um viver festivo é a volta do arrasta-pé onde tudo era só desgosto.

Antes de ensinar verdades, a pele,

Aquém das abstrações, os afetos,

A despeito dos regulamentos, o toque,

De costas para o Templo que sacrifica o corpo,

Sob o escândalo da sinagoga que nega os prazeres,

Quando ainda olhos não viam,

Quando ainda doutrinas asfixiavam,

Quando ainda os corpos eram feitos inimigos

Jesus viveu pagodeiramente,

insinuantemente,

dançarina e divinamente um corpo entre nós.

Festejou, tocou, chorou, cuspiu, lavou, contou, transtornou, mergulhou, desandou, enxergou, reuniu, chamou, ensinou,

dançou histórias entre tantos,

entre cantos,

entre olhares

Entre abraços.

Reconciliou divertidamente o corpo com o próprio corpo

Comeu e bebeu e amou entre folguedos,

Inventou histórias e fez sambar utopias

Repartiu pães e coreografou a misericórdia

Pediu água e despertou a sede da mulher

Espelhou consciências e as pedras caíram das mãos dos homens

Ouviu a desprezível siro-fenícia e reaqueceu corações

Comeu feliz com um rico maldito e fez valsar a compaixão

Bem antes de alguém chamá-lo de Deus,

Ele dançou divinamente nossas festas,

Fazendo bailar dignidades na roda-viva

Nietzscheanamente escandaloso,

Forrobodomente insinuante,

O Deus de Jesus é “Um Deus que Dança”

E convida você a entrar na ciranda de uma nova fé

A gente se descobriu em um jardim,

ele passeava como quem ora e orava como quem passeia. Entre oliveiras e figueiras,

vi nele o semblante de quem reza mais com os olhos que com os lábios,

seus passos eram de um jardineiro reverenciando a vida.

Parecia procurar o coração entre as folhagens e a própria fé, como um fruto selvagem escondido em arbustos.

Seu olhar flutuava imaginando um mundo ainda por florescer.

Assim como eu, aqui, debaixo dessa figueira.

Aqui, fujo dos olhares que, se não me ignoram, me condenam;

aqui, estou mais perto de mim; a fuga cessa e a culpa silencia.

Aqui, a vida insurge contra a morte.

Os olhos daquele homem encontraram os meus, tive medo e desviei o olhar, eles me viram como ninguém jamais me olhou. Medo do encontro? Do reconhecimento? Da verdade? Do mistério? Do amor?

Dias depois, o convite deslumbrado de um companheiro de buscas, Felipe, fez tudo ter sentido, o jardineiro misterioso era um novo mestre a procura de discípulos. Fui levado até ele, queria muito ir e queria muito fugir; seu olhar misterioso ainda queimava nos meus olhos.

Ao chegarmos, ele não precisou de muitas palavras: “Natanael, eu te vi debaixo da figueira”.

Só eu sabia o que ele quis dizer, mesmo sem falar; disse como nossos silêncios conversaram no jardim.

Disse que precisamos cuidar de nossos desejos como um jardineiro cuida dos seus amores.

Disse como o jardim nos fez irmãos.

Disse o que apenas os seus olhos me falaram: eu acredito em você!

Ousei imaginar: se Deus aparecesse nesse momento, ele deveria ser aquele homem, Jesus, meu companheiro de Jardim! Estar perto dele era divino. Por isso, prostrei-me e declarei para o susto de todos: esse homem é o “Filho de Deus, o Rei de Israel!”

Seguindo após ele, vendo-o curar doentes, comer e beber com gente que a religião desprezou, escutando-o contar histórias para iluminar um novo Reino, ouvi os tantos nomes que lhe deram: De Mestre a filho de Belzebu; de Filho do Homem a blasfemador; de Filho de Davi a comilão e beberrão; de Messias a embusteiro; de Filho de José e Maria a Filho do Deus Vivo. Eu o chamava secretamente de Jardineiro.

Vê-lo como um jardineiro ajudou a resolver o impasse da minha fé:

De Deus sempre pensei no assustador Senhor dos Exércitos, ou no Terrível Soberano que a todos julga. Sempre que falei no Temível Senhor dos Céus e da Terra, tive medo, ou senti-me devedor, incapaz e sujo.

Quando ia ao templo, voltava de cabeça baixa, desprezando a mim mesmo. Esse Deus estranhamente parecia meu pior inimigo.

Mas estar perto de Jesus não proibia minha humanidade e ela não era má; era promissora e bonita. Ouvi-lo enchia meu peito de dignidade, fazia-me olhar a vida de cabeça erguida, cheio de coragem. Cada vez que ele me olhava, seus olhos diziam: eu amo você. E isso era tão próximo, tão humano, tão libertador e, contraditoriamente, era o que de mais divino me acontecia.

Comer, beber, rir, abraçar, chorar, dar as mãos, lamentar as perdas, sobreviver às traições, tropeçar, recomeçar, acolher os diferentes, amar em vez de odiar, perdoar em vez de se ressentir, era voltar e cultivar o jardim para o qual Adão e Eva deram as costas.

Andamos juntos e em outros jardins o vi cuidar da vida como o próprio Deus plantou o jardim no começo de tudo.

Digo baixo, porque parece uma blasfêmia. Jesus é Deus entre nós. O mais humano. O mais divino.

No Jardim do Getsêmani, as oliveiras testemunharam o divino amor de um homem que se deu por todas e todos. Vi Jesus chorar e sofrer e só não desistir por muito amar suas irmãs e irmãos; cercado por traidores, poderosos cheios de ganância e soldados furiosos, ele recusou tomar a espada nas mãos e escolheu semear a si mesmo nos nossos corações, como um jardineiro da vida lança sementes de gentileza e bondade no mundo.

Prenderam meu jardineiro. Torturaram o próprio Deus. Assassinaram mais uma vítima da injustiça no mundo. Mas eles não sabiam o que eu sei. A vida de Jesus foi a semente de uma nova humanidade. Um jardim para reviver.

João estava do meu lado, quando o prenderam, e apertava a minha mão para me consolar. Perguntei a ele por quê. Aquele que recostava a cabeça no colo de Jesus sussurrou nos meus ouvidos: “porque Deus o mundo amou tanto, que mandou o seu único filho para que todo o que crê não morra, mas tenha a vida eterna.”

O poder do Natal é o de um bebê
O poder de não ter poder algum
É uma fraqueza que misteriosamente nos mobiliza
Uma ausência que graciosamente nos faz presentes
Nós, que andávamos dispersos de tão aflitos;
distantes, de tão cansados;
apagados, de tão tristes;
alheios, doentes, oprimidos,
de tão sombrios
Agora a delicadeza de um menino nos desperta,
“Maravilhoso Conselheiro, Deus Forte, Pai da Eternidade, o Príncipe da Paz” é como nomeamos uma criança

Jesus nina sereno e quente e delicado
Ele fez da manjedoura um berço; do estábulo, um lar
A beleza é insurgente
Entre os pobres está o libertador,
é na periferia que a verdade reluz,
é entre os sem-lugar o espaço da revolução
Se a paz não nasce entre as vítimas não é paz
A salvação é embalada no colo exausto dos refugiados

O corpinho débil e silente acorda-nos do cansaço
Faz ouvidos de gente sem voz escutar canções:
“Glória a Deus nas alturas e paz na terra aos homens aos quais ele concede o seu favor”
Faz pastores nas sombras da noite verem clarões.
Ouvem anjos, corais e o sinal é ver o belo onde tudo parece estranho:
“Encontrarão o bebê envolto em panos deitado numa manjedoura”

O poder do bebê está nos olhos de quem ousa amar
e ver e acreditar e desejar
O poder da fé está nos olhos que veem promessas;
que enxergam a sútil beleza do futuro
teimosamente aberto,
vertiginosamente livre
A violência não é dona do destino;
Deus é a criança em flagrante ternura,
ela faz os desprezados esquecerem vinganças,
os ressentidos abandonarem ódios
e correrem estradas para tão somente amar

O bebê está no colo de Maria, ele mama faminto,
suga o peito da mãe e esta é a revelação
Os pastores chegam falantes, cheios de histórias,
os olhos se voltam para a cena delicada
e o silêncio inevitável acende a imagem
Eles não veem só a óbvia pobreza,
não se rendem à triste injustiça
A cena é suave e gentilmente insinuante
Os ressentimentos podem não virar ódios
O cansaço pode não ter a última palavra
Um dos pastores relembra as vozes da madrugada:
“Hoje, na cidade de Davi, nasceu o Salvador, que é Cristo, o Senhor”

Os Magos se aproximam como meteoritos que rasgam o céu,
têm a urgência de quem sabe aonde querem chegar,
O bebê espreguiça e boceja suave e sem pressa
Baltazar é o nome do que se antecipa e pede para ninar a criança
Com o nenê no colo, mal consegue respirar
Sente uma desconhecida reverência, de quem não sabe mais para onde ir
O bebê nos braços fortes de um adulto pede gestos sutis,
muda o tom da voz,
converte os movimentos descuidados em uma dança carinhosa
O corpinho frágil refina o corpo embrutecido
e o mago que vivia com os olhos nos rastros luminosos,
Agora não tira os olhos do rosto gentil
Melchior, com os pensamentos nadando na esperança, puxa da memória as palavras ouvidas no palácio:
“E você, Belém, terra de Judá, não é de modo algum a menor entre as principais cidades, porque de você sairá um líder, que vai apascentar meu povo”

O casal se entreolha, suspira e José diz aliviado:
“Deus está conosco”
Maria faz que sim com a cabeça, toma o Jesusinho no colo e cantarola uma canção de ninar:
“E será seu nome Emanuel”

A incredulidade de São Tomé, Caravaggio.

Foi a angústia que nos aproximou, segui a dúvida quando aceitei o convite para me juntar aos discípulos de Jesus. Eu sou um homem feito de perguntas e muita aflição.

Não lembro de mim sem o sofrimento de quem sufoca o que grita na alma. Carregava a vergonha de ser um estranho, alguém sem o fervor dos crentes; o que todos tratavam como óbvio, a mim parecia vago.

Sentia-me uma farsa nos jejuns sabáticos e suas purificações; a autocomiseração dos devotos não me descia pela garganta. O que em todos provocava culpa e arrependimento, em mim era revolta e ódio. Não aceitava que as legiões romanas pudessem ser instrumentos da justiça divina, não conseguia acreditar que éramos tão transgressores que a opressão tornara-se o nosso castigo. Se os tiranos que nos afligem são uma providência de Deus, o que fazer com a ira que sinto por tanta destruição e ruindade?

Um Deus que usa maldosos para realizar a sua vontade não é ainda mais perverso? Quem é esse Todo-Poderoso que eu preciso convencer de ser justo e bom? Sou melhor que ele? Preciso mostrar-me indigno para que ele de mim sinta dó? É o meu sofrimento que o torna favorável? Então ele é pior que o meus inimigos? Esse Deus não nos ama. Ele nos odeia. E eu a ele. Sentia. Mas nada podia dizer. Havia uma ruptura dentro de mim.

Eu existia do lado de fora, mas ninguém podia saber. O corpo dentro, o sentimento fora. Cada vez que entrava na sinagoga, a sinagoga saia de mim. Enquanto liam os Profetas, não dava para não ver as testas piedosamente franzidas dos mesmos que há pouco ignoraram o faminto à porta. Não queria acreditar que esse mundo precisasse ser sem Deus para ser bom, e isso me atormentava; mas me incomodava muito mais que pessoas tivessem tanto de Deus e fossem tão más.

Sentia-me exilado de mim mesmo. Não conseguia hospedar o estranho que me tornei.

Pelo meu nome ninguém nunca me chamou, Judas. Chamam-me pelo nome do meu triste silêncio, Gêmeo. Os judeus não satisfeitos com o Tomé da língua do povo, acrescentam a língua dos gregos, Dídimo. Para que ninguém esqueça que sou gêmeo. Da minha perda. De uma ausência.

Lísia era a minha irmã, nascemos na mesma gravidez. Dividimos o corpo da nossa mãe, sugamos os mesmos peitos, disputamos a atenção do mesmo pai e espalhamos brincadeiras pelas ruas da Galiléia. Repartimos a mesma alegria de viver.

Ainda criança, acompanhei nosso pai para aprender o ofício da sobrevivência, no entanto, pescar era ficar longe dela e das brincadeiras e das estripulias e dos segredos de nossa gêmea infância. Mas ao voltar, nossos encontros eram cheios de histórias para contar; a luz dos seus olhos admirados ainda brilha na minha saudade.

Um dia, voltamos e a aldeia estava revirada. Enquanto pescávamos, os soldados do império invadiram nossas casas, violentaram as mulheres e sequestraram a minha alma. Paralisei à porta, diante do corpo morto de minha mãe, minhas palavras e lágrimas foram sugadas pelo horror; imaginava o que os sobreviventes contavam, os gritos desesperados por socorro, o clamor delas para que Deus tivesse misericórdia e as ajudasse. Lísia foi levada para servir na casa de algum centurião. Nunca mais soube dela.

Foi nesse dia que me desencontrei de Deus.

A cada oração comunitária, minha tristeza tornava-se mais profunda e calada. O que dizer a um Deus que domina sobre tudo e nada acontece sem que ele queira, até mesmo a violência dos que nos humilham? Onde estava o livramento prometido aos justos quando os romanos esmagaram nossa dignidade e nos proibiram de viver?

As feridas da nossa gente eram as pegadas de um Deus que tinha me dado as costas. Se existe, pensava, ele é meu inimigo.

Não podia dizer não creio sem que isso parecesse um ruído. Então fazia inoportunas perguntas, estragava os prazeres da piedade irrefletida. Alguém dizia, Deus me chamou, eu perguntava, quem mais ouviu? Outro tentava consolar, Deus sabe o que faz, então foi ele que matou? Mas Deus é bom, é mundo é mau por quê? Deus curou, então por que deixou adoecer? E um dia, um velho saduceu delirou, se eu morrer, Deus vai me ressuscitar; com ou sem rugas? Amargo, também conseguia rir.

Já eram várias noites de frustração. Precisávamos que a pesca tivesse sido boa. Mas só juntamos rasgos e sujeiras nas redes. Na manhã do grande dia, as esperanças anoiteceram mais uma vez. A boca salgada pela maresia, as costas surradas pelas tempestades, nossos sonhos esfarelados na areia da praia. Eu evitava levantar a cabeça e ter que olhar para tantos rostos vazios. Pedro ainda tentou animar, amanhã o Senhor dará os peixes. E o que mata a fome hoje? Importunei, sem tirar os olhos do chão.

As manhãs costumam ser muito frias à beira do lago. O sol ainda tímido sequer aquece a pele, os ossos gelam e doem. A gente se movimenta com exagero e bate as mãos nas redes para que caiam as algas e esquentem um pouco o corpo.

Não faltava muito para terminar os consertos, quando uma gente aflita se juntou e empurrou o novo rabi contra a praia, os barcos e o nosso desânimo. Ele nos observou breve, mas com interesse. Percebeu nosso cansaço e o vazio dos barcos. Viu nossa vergonha. Eu desviei o olhar. Em seguida, pediu emprestado o barco de Pedro. Afastou-o um pouco da praia, flutuando solene nas águas mortas do lago. E muito à vontade, falou às pessoas que permaneciam atentas. Contou histórias do mar e do campo, narrou medos e coragens. Sem pedir licença, entrou na nossa imaginação e sugeriu outra vida. Uma em que somos bem-aventurados e nossas lágrimas sinalizam o consolo por vir; em que nossa fome de pão é de justiça e será saciada; em que a perseguição dos nossos algozes confirma que a mudança desejada é digna; e, para o meu susto, que Deus tem lado, o dos empobrecidos e sofre e chora e clama com eles por outro reino.

Jesus entrou na minha vida através das minhas feridas.

O que era o lugar do nosso sofrimento se tornou por instantes o do anúncio de uma nova humanidade. De uma cara nunca vista no divino. Falou de dentro da nossa angústia. Não deixou com o fracasso a última palavra. E uma inusitada fé flutuava no lago e dançava na sua voz.

De dentro de um reencantado barco, pescou-nos de nossos vazios. Mandou-nos jogar as redes mais uma vez, um pouco além do costume. Pedro não queria, mas foi. Eu nem queria nem fui. Fiquei de longe, da praia, de soslaio com o inaudito. Alguém o provocou em voz baixa, só eu ouvi, você quer ensinar pescadores a pescar? Ele respondeu, mais que isso, quero pescar neles outra fé, a simples coragem de não desistirem.

De repente, o grito esganiçado de Pedro, de quem parecia não saber o que fazer com o que precisava ser dito. Pedia ajuda. Tinha mais peixes nas redes que palavras em sua boca. Outros barcos precisaram socorrer. O amor é quando o espanto é pesado demais para um homem só.

Pensei sem deslumbre, os peixes estavam à distância de mais uma tentativa. Fixei os olhos em Jesus querendo flagrá-lo aproveitando a sorte para inventar-se divino. A frustração do meu melindre, ele gargalhava feito os demais, divertindo-se e mostrando-se desavergonhadamente também surpreso. Olhou para quem o provocara e emendou um aliviado “por que não?”

De volta à areia, ninguém sabia o que fazer com a vida quando ela é boa. Pedro se encolheu prostrado e todos reagimos com a vergonha de sempre. Ele nos olhou com a fé que eu só vi devotada pelos crentes a um Deus. Acreditou em nós. Pescou dignidade no farrapo, o belo no desumanizado, a vida boa no que era só sobrevivência. Pediu-nos para nos reinventar, propôs fazer conosco o que ele se tornou para nós, pescadores de humanidade.

Segui-lo devolveu-me ao lado de dentro; a cada ensinamento, a fé bailava com as minhas perguntas. As palavras cirandavam promissoras; sua fé era dançarina e nossas dúvidas davam o ritmo do próximo passo.

Ele não acreditava a despeito dos que sofriam, mas a partir deles. Nunca falou do divino de costas para os pobres. Ele deslocou Deus do céu às encruzilhadas, do templo aos guetos, da letra fria da lei à pele dos esquecidos. Um Deus à flor da terra.

Minha dúvida também se deslocou. O milagre foi tornar o leproso saudável, ou dar à pele maldita o toque de quem se importa? O cego que o chamara de Filho de Davi via mais que os observadores escandalizados? O prodígio era uma multidão saciada com inexplicáveis pães ou a multiplicação de gestos generosos? A hemorragia da mulher foi estancada para mostrar poder, ou deixar-se tocar por uma maldita é perder poder para estancar o desamor?

Minhas dúvidas abriram lugar para um mundo que valia a pena. Pavimentaram o caminho onde Deus passou a andar ao meu lado. Observando Jesus, vi que Deus está naquele que desperta meus afetos, que acorda minha sensibilidade, que ressuscita minha compaixão e me coloca no mundo como a pergunta que dá voz aos emudecidos.

Descobri que transcender é ter misericórdia. Sair de seu desesperado egoísmo, expandir a consciência e ver-se melhor nos olhos do outro. Estar com Jesus revirou a minha incredulidade, o que era descrença jogou-me na exuberante presença de um Deus feito gente. Reencontrei a fé no cuidado com os feridos do mundo.

A compaixão tornou-se a minha fé.

Os dias foram ficando cada vez mais nervosos. Os poderosos passaram a olhar para Jesus com incômodo. Não gostavam de quem fazia o povo crer sem sacrifícios. Temiam quem preferia os que o Templo desprezou. Tinham nojo de quem festejava a vida com os transgressores. Aquele que levava esperança às margens também fazia o povo dar as costas ao Palácio.

Já se falava em conspiração para matá-lo; as conversas foram se tornando emboscadas; temíamos um apedrejamento a cada multidão; em Jerusalém e nos arredores, dizia-se que o nosso mestre era uma ameaça à família e à nação, um blasfemo subversivo.

A notícia da morte de seu amigo Lázaro chegou feito um furacão. Desacomodou o mestre como eu nunca tinha visto. E o fez fechar os olhos para o risco de ir a Betânia, casa de seus amores, vizinha da perigosa Jerusalém. Sabíamos que era um lugar hostil e uma séria ameaça a sua vida. Mas ele fez trocadilhos, disse que o amigo dormia e iria acordá-lo, provocou a nossa lealdade e insinuou a absurda ressurreição. Alguém comentou que ele não suportava a ideia de Maria estar desesperada e longe dos seus braços.

Avisamos que seria morto se pusesse os pés no vilarejo. Mas ele manteve a decisão intacta. A promessa de uma ressurreição entendi como mais uma parábola, outro provocativo enigma para uma vida tão precária quanto carente de recomeços. Alguns o viram alucinar ao prometer o impossível e discutiram a doutrina e os antigos debates dos saduceus. Não. Ali não vi um delirante nem um herege nem um teimoso, vi um amor mais forte que a morte. Ali a fé transbordou em mim depois de uma inundação de sentidos. Coloquei-me em pé e fiz o que seria a declaração do que creio: Vamos juntos para morrer com ele! A minha crença roubou o fôlego de todos. Eu não acreditava em ressurreição. Eu acreditava no amor.

Em Betânia, as cenas se sucederam velozes, quase impossível não se perder. Marta o recebeu com instruções e prognósticos. Maria perdeu-se em seu colo, chorou e o culpou por não estar lá e impedir a morte do irmão. E o mestre, até então cheio de certeza, se desmanchou vulnerável como nunca antes. Chorou. Depois disso outras cenas vieram, mas eu fiquei imerso em suas lágrimas. Mergulhei no coração de Deus através de suas dores.

Tudo o mais pareceu um detalhe. Jesus mandar remover a pedra que encerrava o Lázaro tido como morto e gritar pelo seu nome feito quem acorda o doente de um sono profundo. Não me comoveu Lázaro aos olhos de todos. Permaneci submerso na fragilidade de Jesus como no dia que fui batizado no Jordão. Na minha mente, o choro de Jesus foi o que de mais divino aconteceu em Betânia. Mas a multidão e os demais pareciam se desviar do homem que ali se revelava, afirmar uma milagrosa ressurreição era meio-caminho para o trono. Sentiam-se ao lado do Todo-poderoso. E eu só via o Todo-amante.

Aqui se formou a encruzilhada que o levou à cruz e os discípulos à grande decepção. Para os poderosos, livrar-se de alguém com a fama de ressuscitar pessoas era urgente. Para os discípulos, tomar o poder dos romanos era um delírio religioso. Para mim, ninguém tinha entendido nada.

Quando o mal caiu sobre nós, o meu sofrimento não foi o mesmo dos demais. O nosso mundo desmoronou em cascata. A traição pelo íntimo e confiável Judas Iscariotes. A Captura do imbatível e promissor rei igual a um colibri indefeso. A humilhação e tortura aplaudidas pela multidão que passou a ver nele um demônio. A absurda preferência do povo pela violência de Barrabás à ternura de Jesus. Os inescrupulosos chefes do Templo mentindo para salvar suas verdades. A indiferença de Pilatos que ignorava tanto o réu quanto os acusadores.

Pedro não sabia o que fazer com a fraqueza de Jesus; menos ainda com a fanfarrice de uma fé que fecha os olhos para o fracasso. João e Tiago não puderam mais trovejar planos de conquista. Judas descobriu tarde demais que seguiu o homem certo pelo motivo errado.

Meu sofrimento por sua prisão e morte nada teve de decepção. A cruz sempre esteve no horizonte que ninguém quis ver, mas ele nunca deixou de apontar. Olhando-o crucificado, tinha em mente o gesto escandaloso de se inclinar aos nossos pés para os cuidados que cabiam aos escravos. Na cruz, tanto quanto na bacia com água, para encontrar Deus também precisaríamos nos baixar até o ponto em que nossa humanidade não dependesse mais de prepotências.

Vi Deus ferido pela mesma dor que atravessou a minha história e a da minha gente. E acreditei.

Ver o divino Jesus crucificado foi tão triste quanto reconciliador. Eu me vi nele. Como um dia ele se viu em mim. Fui salvo por essa estranha beleza.

Há mais de uma semana falam de sua ressurreição. O que em todos causa euforia, em mim reivindica um pouco mais de escuta. Ouço de Maria que o confundiu com o jardineiro, mas o reconheceu pelo jeito de chamar seu nome. Não lhe diz nada que ao tentar segurá-lo em seus braços, ele tenha se negado e sumido diante de seus olhos? Tê-lo nas mãos como um troféu não seria perdê-lo? Não foi a saudade de quem não deixou de amar que o reviveu?

De Cléopas ouvi que ele e seu amigo viram Jesus em Emaús. Depois de caminharem lado a lado como estranhos, o convidaram para pernoitar, assim que ele deu graças e partiu o pão, viram que era Jesus, ainda que ao tempo de uma piscadela. Também disseram que o coração queimava enquanto o estranho lhes falava no caminho. Não percebem que a fugidia presença é um encontro no coração? Não foi a imagem e o cheiro do pão partido que o fez reviver?

Pedro, João e os demais insistem que Jesus está vivo e que agora nada e ninguém irá impedir o Reino. Contaram que entrou, mas não lembram de lhe abrir a porta; que tinham muito medo quando o viram no meio da sala; o escutaram acalmá-los do mesmo jeito que no barco açoitado pela tempestade e, depois de soprar neles como quem suaviza uma ferida, disse que o mesmo ânimo que o inspirou estava vivo neles. Do jeito que apareceu, não foi mais visto. Ninguém entendeu que não se trata da reanimação de um defunto para uma vingança triunfal? Não será a vida arejada por seu testemunho que sempre o ressuscitará entre nós?

Não quis ficar na casa onde os outros discípulos se escondem. Na verdade, lamento a confusão de ideias e sentimentos. Não sou melhor que eles, mas lamento não terem entendido a estranha beleza das lágrimas e feridas de Jesus. Elas foram aberturas na recalcada humanidade para o coração. É sofrimento, mas é por ele que nossas almas se conectam. As feridas e as lágrimas de qualquer um são as feridas e o choro de Deus. Toca no divino quem cuida das dores de alguém.

Oito dias depois do alvoroço de quem disse ter visto Jesus vivo, cedo e estou aqui com os demais nesse casa de gente assustada. As janelas estão tão trancadas quanto as portas. O calor só não é maior que a pressão deles para eu deixar de duvidar. Pedem para eu crer na ressurreição. Não sei o que lhes dizer. Pedro insiste, você precisa ter fé. Tocar nas feridas de Jesus é a única chance de senti-lo vivo novamente, meu amigo, respondo.

A casa está fechada há dias, se tornou uma masmorra húmida e cheia de gente que só reconheço pela voz e o cochicho amedrontado desde a Páscoa. O azedume de hálitos aflitos tomou conta do ambiente. Sinto-me enjoado como num barco em mar agitado. Estou tonto, mas sair e arejar nem pensar. Não deixariam. Precisam que eu creia no que eles creem.

Quem é este? Parece o mendigo pelo qual passei ainda na rua.

Talvez alguém tenha esquecido a porta mal fechada. E essas mãos estendidas? Ah, quer me convencer a ajudá-lo por causa das feridas.

Por que me olha assim? Este olhar. Esta fragilidade. Aqui estou eu chorando de novo, não bastasse o suor escorrendo no rosto.

Por um instante, pareceu minha irmã pedindo-me um abraço. Deus Amado! Meus olhos estão embaçados e ardem. Não sei o que pensar. Só tenho vontade de chorar e abraçar esse estranho.

Toque aqui, homem, não tenha medo.

Agora é Jesus que vejo? Estou quase desmaiando, vou me ajoelhar. Choro mais que suo.

Deus está aqui. Jesus está aqui. Meu Senhor e meu Deus!

Se não é Jesus, o amor que sinto agora é o mesmo que tenho pelo Mestre.

Ele parece querer dizer algo.

Tem muita gente que não me vê para ser feliz. Você parece aflito, mas só você aqui dentro conseguiu me enxergar.

Seja quem for, é Jesus! Meu Deus e meu Senhor!

Elienai Cabral Junior

O poder não é grande nem imperial nem público. É mínimo. Limitado pelo alcance dos olhos. Íntimo. Sua fronteira é onde o soco pode ser desferido. Irrisório. Sua importância é do tamanho de uma conversa despretensiosa.

Os grandes não sabiam quem era o nazareno maldito. O Imperador sequer entra nessa história. Pilatos o ignorava. Herodes se divertiu por ter nas mãos o mosquito que fez os inconvenientes sacerdotes engasgarem. A multidão conhecia a violência de Barrabás, mas da blasfêmia do anônimo nada sabiam que fizesse valer a pena.

Aqui está o poder, ínfimo, quase desprezível. Mas é aqui onde o mundo começa. Aqui o poder usina, faz dobras na realidade, produz pessoas, domina os corpos. Aqui, onde tudo é tão pouco e tão visível que se torna transparente.

Invisível, de tão visível, o poder a tudo e todos envolve.

Eis a onipotência, tão pouco, o poder espalha-se fluido e irresistível nas relações. Costura pactos. Feito fios que tecem as tramas da rede de um pescador. Um detalhe. Um afeto. Um medo. Uma ameaça. Um desejo. O outro que tem o que tanto quero. As disputas na Sinagoga. A segurança de ter o pão sobre a mesa. O prestígio do escravo com seu senhor.

Jesus de Nazaré não saía da cabeça provinciana dos chefes dos sacerdotes. Ele era uma ameaça. Gente antes dócil e servil, agora tinha esperança. Viviam recontando as histórias e lições do mestre galileu. E pessoas assim, que acreditam em outras versões para a vida, resistem aos que a querem sempre do mesmo jeito. A ameaça? Gente que imagina faz vibrar a mais resistente rede de controle.

Encontraram entre os seus discípulos, amedrontados e fragilizados com as ameaças vindas do Templo, a fenda pela qual ferir Jesus. Há sempre trincas em um muro feito de gente, nossos assustados amores. Não precisaram de mais que um punhado de dinheiro para desmoronar a fortaleza idealizada dos amigos. A princípio, apostaram que seria o assustado falastrão, Pedro, ou os Filhos do Trovão, tão desejosos de expressão. Mas foi o impaciente Iscariotes, de tal forma confiado às facas, prontificou-se a precipitar a guerra, a empurrar o líder para a luta.

Sem traição, o poder nada realiza. Nele, precisam ficar pelo caminho tantos quantos custarem a autoperpetuação. Não se trai por Roma nem por Jerusalém. Trai-se para ter razão. Para não sentir-se um fracasso. Pelo gosto infantil de superar um concorrente. Para fugir do próprio pecado. Para calar o medo mais íntimo. Para quebrar o espelho à frente.

Nenhum dos amigos queria o mestre lá, preso e humilhado. Pedro não suportou olhar nos seus olhos, quando por azar se cruzaram. Tudo parecia dizer que também não era o plano de Judas, a guerra que queria não começou, mesmo com o Mestre encurralado pelo exército de Caifás. Jesus decepcionou a lógica do embate, resistiu ao poder negando-se as mesmas armas dos opressores. Preteriu a violência e Judas não suportou continuar vivo.

O corpo de quem faz os pobres sonharem com a dignidade tem que ser humilhado e macerado até o último fôlego. Nada é mais odioso que tentar tirar debaixo dos pés a gente pobre e maldita que pavimenta o caminho dos homens ricos. A violência que sofre Jesus é do tamanho do insulto que ele foi aos donos do tesouro do templo. A Via Crucis é a epifania do poder. O espetáculo da tragédia humana.

Jesus é arrastado violentamente até o templo, de lá ao Palácio de Herodes, para enfim curvá-lo a Pilatos em seu Pretório. A engrenagem que mói a carne de quem ousa lutar pelos pobres e esquecidos é quase sempre a mesma, do sacerdote ao rei, do rei ao juiz, do tribunal à morte.

Não precisaram andar muito, de Herodes até Pilatos, o Pretório ficava no mesmo palácio. Ambos os governantes estavam em Jerusalém por causa da festa, por isso enchiam a cidade de soldados e deixavam a imagem de força bem polida.

O cortejo atravessou pátios, percorreu luxuosos corredores. E tudo era pétreo e frio como uma mentira mal contada. Jesus, vestido de rei, era o bobo da corte. O rosto deformado pelas bofetadas, os cabelos ensanguentados e colados na cabeça, ele tinha o cheiro azedo das longas torturas. O nazareno arrastou-se feio e indigno pelos lustrosos pisos palacianos. A porta orgulhosa se abriu e ele caminhou claudicante até Pilatos. Ficaram sós. E o inusitado aconteceu, nenhum dos dois parecia estar ali. Um encontro de ausências.

À parte dos sacerdotes e seus soldados, que permaneceram do lado de fora do Pretório, porque se pisassem ali, ficariam impuros para os ritos da Páscoa, Pilatos e Jesus respiram outros ares. A pureza dos religiosos é a ficção que fica para trás.

O romano não tem a quem mostrar-se poderoso, e o judeu fica livre para não responder às perguntas que já traziam sentenças. Pilatos desdenhava as razões e o mundo dos judeus e via diante de si a carne barata de um inocente desafortunado. E Jesus, ele não encenava a ficção que começara na casa de Caifás.

Pilatos olha longa e profundamente para o prisioneiro. Ali, longe da pureza dos piedosos e dos interesses inconfessos dos poderosos, ele não consegue ver o criminoso, enxerga o corpo frágil e carente. E aparece o homem.

Jesus não vê o Governador, vê se desmanchar o gigantismo de que a tolice humana é capaz. E aparece alguém com dúvidas.

Os homens se veem.

A verdade surge.

Pilatos conversa com Jesus. E se eles se escutam é porque se ausentam das brigas, das acusações virulentas dos sacerdotes, dos gritos ensandecidos da multidão. Conversam em um intervalo de tempo, na narrativa suspensa. Quando as engrenagens da máquina descansam, os encontros se tornam possíveis.

Você é um rei, pergunta o duvidoso Governador. As palavras são suas, desliza Jesus. Mas depois de ofertar a Herodes um silêncio subversivo, as escorregadias palavras eram ali o mais credível ponto de contato. Nada é tão verdadeiro quanto a dúvida e a suspeita.

Toca-se a verdade quando se resiste aos insólitos jogos de poder.

Não faço parte desse mundo, meu reino é outro; não falo a língua dos inquéritos, não me distraio com retóricas, já morri para o grande simulacro que reúne essa multidão. Sou rei de um reino em que dominar pessoas e usar seus corpos é a pior mentira. Meu testemunho é da verdade, a que experimentam aqueles que não temem perder a própria vida, que não fazem de uma imagem de sucesso o seu maior amor, que não se importam em serem confundidos com os impuros e malditos, que aceitam a rejeição como prêmio e o ódio dos poderosos como sinal de confirmação. Eis a verdade de quem ama, encerrou Jesus.

Nesse instante, os seus olhos se perderam nos vãos das enormes janelas que circundavam o salão, por onde entrava o grito por crucificação, para em seguida encontrarem com clemência os de Pilatos, que mergulhara inerte em um longo silêncio.

O que é a verdade, Pilatos perguntou sem esperar resposta. Seu rosto caíra desalentado. O que é a verdade para uma multidão que vive de se empanturrar com imagens de força? O que é a verdade para esses sacerdotes que nada temem mais que as ameaças à arrecadação do templo? O que é a verdade para aqueles que preferem expiar suas culpas inventando vilões? O que é a verdade para quem faz do medo uma arma de dominação dos corpos? O que é a verdade para alguém como eu, o que é a verdade para um covarde, o que é a verdade para quem não consegue saber quem é sem essa patética farsa?

Pilatos deu as costas a Jesus, olhou com nojo as próprias mãos. E antes de voltar ao pátio e à multidão, pediu uma bacia com água e berrou impotente, o que é a verdade?

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Sinto saudade de ter saudade.

Não sei ao certo quando meu corpo desistiu de me manter de pé. Mas sei que fui deixando de lado lentamente a capacidade de acreditar no trabalho, no dia, nas pessoas, nos amores, nos caminhos a seguir.

Foi devagar que a dor dos pensamentos migrou para os ossos, para os joelhos, tornozelos, cotovelos, para tudo que faz mexer uma vida. Fui parando porque tudo doía.

Escutar o barulho das crianças doía. Assistir às leituras da Lei e dos Profetas doía. O sabor da comida, o vento na pele, a pergunta dos curiosos, o conselho dos sábios, as receitas dos médicos, as broncas dos amigos, as pálidas soluções de sempre doíam.

O tom de voz piedoso doía. Os olhares, cenhos franzidos, gestos, lamentos; a misericórdia doía. A oração, a sinagoga, o fariseu, o mestre, a fé doía.

A dor empedrou meus desejos.

Deitei porque nunca mais dormi em paz.

Parei.

Nasci em Cafarnaum. Meus pais não. Chegaram aqui trazendo esperanças. O grande lago prometia ser um mar de prosperidade. O Galileia tinha cheiro de vida nova, de peixe, de saciedade. Foi a sua margem que erguemos as primeiras casas, pavimentamos as primeiras ruas. A sinagoga não demorou muito para ser construída. Era lá que garantíamos nossa salvação, a lei conhecida deveria encharcar as mentes dos meninos e pastorear gostos, decisões, os hábitos dos adultos. Lá recebi a fé que emoldurou meu mundo, que Deus dá a cada um o que merece.

Os primeiros anos contaram com o apoio dos romanos, ganhamos um Centurião, homem sério, mas generoso. O pão não faltava, o vinho era trazido de longe, material para fabricar os barcos e as redes era uma cortesia do Império. Ocupar a terra interessava aos poderosos.

Não demorou para chegarem mais estrangeiros, negociantes, mestres de novas disciplinas, gente de fé. Com eles vieram a alfândega e os coletores de impostos. Falava-se de muito dinheiro. E os que chegaram ricos, mais ricos ficaram. E os que trouxeram sua pobreza, foram desistindo da prosperidade que nunca acontecia. Vi meus pais murcharem aos poucos, feito tâmaras maduras. Cansaram aos 30, morreram não muito depois.

Acho que ganhei do meu pai o jeito luminoso de acreditar em coisas boas. Mas sinto em mim também a sombra que angustiava a alma da minha mãe. Eu oscilava entre o deslumbre de construir uma vida boa e a desconfiança lúgubre de que não era digno. Acostumei-me aos picos de entusiasmo seguidos por vales de desânimo, cada vez mais profundos e demorados.

Tornei-me um pescador, de dia, ofício do meu pai. E um sombrio notívago a desfiar melancolias noite a dentro, ofício secreto da minha mãe.

Entrava no lago com o barco cheio de fé, desembarcava repleto de peixe, mas chegava em casa com um punhado de dinheiro, que mal dava para o trigo e o leite. Cansado desde o começo, sempre duvidei do meu valor. Mas nada tentava deixar parecer à mulher com quem casei e às duas meninas sorridentes e carinhosas, filhas do meu amor. Depois que elas dormiam, chorava lágrimas ardidas. Sentia-me um fraco. Repetia a tragédia dos meus pais. Parece não haver lugar para gente como nós.

Cafarnaum era acelerada. Inclemente. Lugar para o sucesso inesperado e o fracasso imediato. Não havia tempo para a brisa fresca que vinha no fim do dia. Nada de conversas descontraídas, rodas de música, anedotas, risos. Todos tinham mais trabalho que tempo. Parar era pecado.

A sinagoga demarcava o espaço dos que triunfavam e o dos que fracassavam. O que pode tornar razoável a má sorte? Como explicar o fracasso? Era lá que as questões da vida infeliz ganhavam respostas que emudeciam vozes aflitas.

A impureza.

O demérito.

A transgressão.

Na casa da Lei chegava inquieto e partia culpado.

Não há benção para os que fraquejam na Torá, pecadores sob a ira de Deus. A pobreza em uma terra de ricos vira fácil nome de maldição, sinal de danação, fracasso na fé. Foi quando leram a história de Acã que aceitei minha desgraça. Nele se escondeu o pecado que a todos amaldiçoou. E calava um pouco. E morria um tanto.

Os muitos pecados que cometi desfilam na minha memória o tempo todo; tanto, que pecado é o que pareço ser. E na companhia das transgressões, choro amargo a culpa de não ser bom o bastante.

O êxito dos outros me acusa. Os olhares dos que assistem a minha pobreza confirmam a condição. Na Sinagoga, restam-me os últimos lugares. Tenho vergonha das meninas e de Marta, a quem já amei com uma força que há muito foi embora.

As noites tristes invadiram os dias. A culpa de existir sem êxito sequestrou qualquer energia. E o que era o cansaço ao fim do dia, de pescar, de não conseguir tanto peixe quanto se precisava; o cansaço de fazer mais do que podia e menos do que precisava virou um cansaço de viver. E de tanto parar enfraquecido sem poder carregar minha dor, foi a cama que me arrastou para o tombo do qual nunca mais me levantei.

Os médicos se revezaram tentando expulsar meus demônios. Os amigos se esforçaram nas explicações. Leram Jó. Recitaram os salmos. Eu só lembrava de Acã.

Foi quando falaram da febre da sogra do Pedro, pescador com quem sangrei o mar em busca de peixe. Contaram do escravo do Centurião. Ambos curados pelo ilustre galileu. Disseram que estava na cidade, em casa, e que todos correram para lá. Queriam me levar também. E o que fiz? Nada. Nem pensei nem me opus nem sorri nem murmurei. Permaneci jogado na cama que me restou.

Carregaram-me como a um defunto, de tão amortecido. Mas do cemitério para as ruas. Do fim para o começo. Foi o cortejo do desenterro. A bondade dos amigos queria virar do avesso minha tragédia. Chegando à casa, não havia janela pela qual olhar, menos ainda porta por onde entrar, tudo estava cheio com todos. O filho ilustre da Galileia é uma centelha de esperança na palha seca de miséria do povo. Gente demais. Você está com pena de mim? Sabe o que passou pela minha cabeça? Nada. Não havia mais tristeza possível.

Mas a generosidade dos amigos abre passagens surpreendentes. Ergueram-me até o teto. Destelharam a casa e impuseram-me a Jesus, descendo-me diante do mestre que nada mais dizia, boquiaberto. Olhei para ele e sabe o que eu vi em seus olhos? Nada. Ouvi o murmúrio inquieto de todos.

O cheiro azedo de tantas bocas respirando o mesmo e ansioso ar se multiplicou. Dava para escutar nas discussões e sentenças, a palavra que se repetia monótona e paralisante: pecador. Acho que ele também ouviu e ali entendeu o que me paralisava. Sabe o que disse o médico da sogra de Pedro? Nada. Muitos falavam, ele se calava. O silêncio dele usinava novidades; o meu silêncio seguia desistindo de tudo.

Alguns poucos minutos se passaram, mas parecem uma vida. E eu permaneço aqui, alheio, esvaziado, inerte. Um estorvo no meio da sala. O silêncio se mantém além do suportável. Inquietante. Mesmo eu, vazio e paralisado, fico incomodado. Não digo, mas tenho vontade. Fale qualquer coisa, penso. Ele me olha diferente agora. Parece ter algo a dizer. Todos percebem e silenciam.

Você está perdoado dos seus pecados.

Meus olhos lacrimejam e meus pés formigam. Senti na pele a palavra dita. Ainda não dei conta do que falou, mas sinto que meu corpo ouviu tudo o que precisava para acordar. Uma onda de calor percorre minhas pernas e braços. Suas palavras parecem mãos que me tocam.

Não me conformo com o labirinto de crenças em que todos entraram. Alguém lembra que só Deus perdoa pecados. Acusam-no de blasfemo e tenho medo. Porque sinto vontade de me levantar. Mas é melhor esperar um pouco.

Talvez apenas uma blasfêmia fosse capaz de contrariar a culpa que me paralisou. Parece que seu remédio é tirar de mim a fé que me exauriu. Será que só um blasfemo pode resistir ao poder culposo que controla e paralisa gente como eu?

Passa pela minha cabeça que parei de andar porque não há mais para onde ir, se Deus é do jeito que me disseram, aquele que me explica culpando. Só um blasfemo para apontar outra andança.

Estranho os que o condenam por me perdoar. Não se incomodavam com um homem paralítico e carregado de culpa. Mas têm escrúpulos com um homem sem culpa que pode carregar o próprio destino.

Olho para Jesus e sabe o que vejo? Nada. Nada do que esperava. Ele ri. Não vou dizer, mas penso ver o próprio Deus e ele gargalha. Como uma criança que ri de felicidade porque pregou uma peça nas demais. Muitos reclamam e eu continuo deitado, receio me levantar e causar ainda mais problemas.

Levanta, pega a sua cama e anda. Não seria o mesmo que dizer ‘você não tem culpa’? Ele diz essas coisas com a boca torta de quem acha graça.

Ai, ai. Chega. É o que vou fazer, é pelo que clama meu devolvido corpo, antes que a confusão me impeça. Estou com vontade de rir também. Olha a cara dos meus amigos. Mal conseguem esconder o riso.

A casa está dividida.

Há os que riem e os que preferem chamar a salvação de blasfêmia.

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Ele era incontornável. Seus olhos faiscavam desejosos. Sabia-se da obstinação em brigar pela liberdade. Admiravam-no ao mesmo tempo que o temiam. Judas tinha uma presença agridoce, fazia gravitar expectativas em torno de si, mas era conhecido como Iscariotes, porque já fora visto com os rebeldes empunhando facas.

Aproximou-se faminto de sonhos. Grudou seus olhos em mim com tanto apetite que não pude não retribuir-lhe com um sorriso acolhedor. Estávamos ali pela mesma razão, tínhamos uma só alma e ela era inquieta e esperançosa. Chamei-o pelo nome e ele arregalou os olhos surpreso por eu já saber quem ele era. Gastei dias entre os amigos colhendo nomes de gente que tivesse algo melhor que boa reputação; em busca de discípulos, queria cercar-me de perguntas, de atrevimentos, de desejos, de incômodos; fissuras em um mundo enfadonho, réstias em um reino de trevas. Desde que me contaram de Judas, esperei por ele como um agricultor aguarda as trovoadas de um tempo chuvoso.

Encontrá-lo fez bem a minha esperança. O moço era um acontecimento. Vocação nervosa. Ávido como a ideia que pulsava em mim.

Sem formalidades, perguntou-me pelo que se tornaria em seguida minha pregação mais pretensiosa, você acredita em um novo Reino? E que ele está entre nós. Mas todos têm medo e escolhem se esconder dos confrontos. Não vim trazer paz, mas espada e guerra. Sonhos sem conflitos adormecem. Chego como o ladrão no meio da noite, não quero acalentar dormências, quero acordar coragens. Toda coragem é incidental. O novo reino chegou, mas não para os covardes. Toda covardia é previsível. Seu olhar divagou, do jeito que acontece quando arregalamos os olhos para dentro da imaginação.

Depois dos ensinamentos, avisaram-me que faltavam ouvidos a Judas, disperso e apressado, parecia mais disposto a agir que a escutar. Desdenhei. Quem ouve o barulho da revolução por vir ensurdece um pouco para outros acontecimentos. Difícil ouvir ponderações quando se tem o grito da urgência ecoando na alma.

Enquanto todos dormiam, eu e Judas acordávamos sonhos em conversas intermináveis. Fez-me entender seu afastamento dos Sicários. Sentia que careciam da habilidade de reunir e inflamar o povo. Na última revolta, foi o que lhes faltou para o êxito, explicou. Depois de todo o sangue derramado, olharam para trás e estavam sozinhos. Não há revolta que perdure sem o envolvimento da multidão. Fez-me acreditar que eu reunia todas as possibilidades. Juntava as multidões e incendiava as mentes. Era amado pelo povo e temido pelos poderosos. Ouvido pela turba, meu evangelho assombrava o sinédrio e as sinagogas. Curava as gentes todas e adoecia de inveja os saudáveis piedosos e suas vidas cheias de exclusividades. Abraçar àqueles a quem ninguém tocava era um murro na pureza dos fariseus e sacerdotes. Seguido pelo povo, poderia esvaziar o templo e deslocar poderes. Acreditamos na reviravolta, quando a alvorada introduziu suas pálidas luzes no quarto. Judas apontou a estrela D’alva que piscava na janela, sorriu, apertou minha mão e sussurrou, é você.

O primeiro a chegar, o último a sair. Pragmático, calculava os gastos de cada jornada. Íntimos, molhávamos os bocados de pão no mesmo prato. Ao precisarmos escolher quem cuidasse do dinheiro, ninguém duvidou de que fosse ele o mais indicado. Nenhum de nós parecia tão comprometido com o custo da missão e a não desperdiçar cada oportunidade de juntar adeptos. Nenhum dos discípulos demorou tanto a entender porque preferi estar só e dispersei a multidão depois de alimentá-la no deserto. Sua paixão tornava urgente e guloso cada encontro com o povo.

Minha alma se afastou de Judas bem antes que ele desistisse de mim. Não demorou muito para descobrir-me outro. Para desencantar-me com aquele que viam em mim. Entediado, não queria mais ser o homem com quem todos vinham se empolgando, poderoso, multiplicador do pão e senhor dos milagres. Reli o Êxodo e os profetas e percebi que prodígios e entusiasmo não fizeram amigos para Deus e desconfiei do Messias da multidão. Passei a cultivar o prazer do anonimato e dos encontros discretos. Se outrora acreditei na revolução pelo poder político, se fiz da popularidade o sinal da salvação, agora duvidava de que outro reino pudesse ser realmente novo usando as mesmas armas dos que dominam as almas. Cada vez mais crente em uma nova humanidade, senti-me incrédulo com seus poderes, prédios e ajuntamentos. Mudei. E abandonei o homem a quem todos insistiam em seguir, o líder com quem Judas contava para tomar o poder com a força de quem ressuscita mortos e ajunta multidões. Os adeptos e o poder que os reúne são algemas e quem pensa ter a força de movê-los é escravizado sob o encanto de que lhe chamam de senhor.

Eu fui meu primeiro traidor.

Todos se escandalizaram, mas ninguém sofreu mais que Judas quando dispensei novos seguidores. Quando despedi para suas casas aqueles que socorri, ele não entendeu que queria para eles a liberdade que as multidões tiravam de mim. Vi seus olhos outrora intensos tornarem-se opacos e fugidios. E quem sentava-se ao meu lado passou a se esgueirar pelos cantos mais sombrios. Foi a Pedro que chamei de pedra de tropeço quando tentei explicar quem eu não queria ser e também a ele que chamei de diabo e pedi que se afastasse de mim, mas foi Judas quem baixou a cabeça. Sua presença tornou-se uma ausência.

Em um dia de exótica beleza assisti a sua vulgaridade. Quando o amor de Maria desnudou a frieza de todos. Eu precisava falar sobre a trama urdida para a minha morte e todos preferiam tergiversar sobre banalidades. Ela invadiu a sobriedade cosmética dos homens, parecia dançar, quebrou o caríssimo vaso doado pelas mulheres ricas de Betânia e derramou todo o perfume sobre minha cabeça. E eu deixei e os homens se constrangeram e Judas perdeu-me de vista. Suas palavras, tão sensatas e piedosas soavam secas e desalmadas. Lamentou sem sentir tristeza pelos pobres que poderíamos socorrer com o dinheiro do perfume, mas foi a mim que barateou com sua indiferença. Eu não estava mais ali. Olhou-me, mas nossos olhos não se encontraram mais. Eu já havia morrido para Judas. Então compreendi que Maria embalsamava-me porque me via morto naquela sala.

É preferível matar no coração aquele que se recusa a ser o esperado.

É preciso matar no coração aquele a quem se pretende dar as costas.

Judas foi visto na casa de Caifás. Contaram-me que tramara com os chefes religiosos me entregar aos soldados do Templo. Eis a mais amarga experiência, tornar-se repulsivo para quem um dia se foi amável. Judas culpou-me por ser outro. Demonizou-me para desistir em paz. Era como se fizesse a coisa certa; se não uma vingança, a justiça. O Diabo esconde-se em justas medidas.

Porque traí suas expectativas, ele traiu minha liberdade. Porque traí o seu sonho de poder, Judas traiu o que restou de nós, o amor.

Reuni os amigos para sobreviver à angústia. As horas pareceram dias até que nos juntamos todos à mesa. Judas sentou-se ao meu lado sem perceber que repetia o hábito de um amor que não mais havia, mostrou-se deslocado. Mas com olhos convictos de tão diabólicos. João e Tiago discutiam seus poderes em um Reino que jamais existiria e pareciam resistir ao único no qual poderiam me encontrar, o das desimportâncias, o dos que desistem das aparências para escolher os afetos. Tentei inútil tirar-lhes o peso das exigências, avisei que nenhum de nós estava pronto para a dor da derrota, que se perderiam de tão frágeis, para se encontrarem depois, quem sabe, mais inteiros. Pedro preferiu esconder-se em promessas e falsas esperanças, dizia ser o único a não me trair. Segurei suas mãos, olhei em seus olhos e avisei-lhe que o amor também cansa e se confunde, que suas promessas de fidelidade não acordariam junto com o galo.

Não me espantei ao descobrir que havia ali mais diabos que um Judas pudesse dar conta. Ao denunciar que estava entre eles aquele que me traíra e por quem seria entregue nas mãos dos poderosos, todos se entreolharam sinalizando culpas, pareciam tentar verificar se já haviam sido descobertos.

O diabo mora na pessoa que tememos que todos descubram que somos.

Judas aparentava lutar com as próprias ideias. Pude ouvi-lo tentar consolar Tomé desmantelado com a proximidade dos soldados. Dizia acreditar que minha prisão poderia ser uma amarga solução, que o povo acordaria com tamanha injustiça e se rebelaria; neste instante, vi que me olhou rapidamente e sussurrou algo que só depois Tomé me contou, que eu também despertaria da minha covardia para assumir meu papel de Messias.

A traição torna-se perversa quando não desiste de uma fé que desistiu do amor.

Entre diabos, era preciso exorcizar a mesa. Avisei que aquele que me vendera aos chefes religiosos dividia sonhos comigo como quem divide o mesmo prato. Neste momento, Judas mergulhava um pedaço de pão no meu prato cheio de molho. Apressou o bocado à boca e desvelou sua trágica insaciedade. Abandonou a mesa e encheu-nos do vazio que jamais conseguiremos superar. O desespero de quem ama é nunca cicatrizar a ferida, o absurdo sempre sangra, sempre fere.

Saí de lá há algumas horas e o seu olhar não saiu de mim. Pai, sinto-me terrivelmente só. Parece não haver os amigos a quem confiei minha alma. Não ter sido quem queriam foi imperdoável. Não consigo condenar o obstinado Judas, nem a Pedro, João e Tiago que dormem para não despertar o ressentimento. Rogo-te por eles. Também nós traímos sua fé. Também eu traí o sonho de Judas. Traímos nossos traidores para que o amor fosse possível e sua atordoante e ingrata liberdade.

Pai, não me sinto menos confuso que Judas. Nem menos instável que Pedro. Resistirão a essa dor que nem eu consigo suportar? Quem sabe, se fosse possível, também eu fugiria desta aflição que queima dentro de mim? Já posso ouvir os passos dos que me levarão. Se a tua vontade é esta ardida liberdade, que seja feita e que venha o amor e todas as suas salvações.

Judas? Não esperava te ver mais uma vez. Com um beijo, amigo? Espere, aonde você vai? Não corra. Não desista. Eu não desisti.

Pedro, orei por você para que também não desista. Confirme meu amor por Judas. Alguém lhe diga antes que seja tarde, também eu o traí.

 

O Natal não é uma história fácil de ser contada, a despeito de ser a mais linda narração de todos os tempos.

Se parecer fácil, não é o Natal dos Evangelhos e nem tão bela. É difícil, porque é feita de estranhas contradições. De irônicos e graciosos espetáculos, de um lado. E de discretíssimos e opacos acontecimentos, do outro.

De um lado, luzes, corais de anjos, estrela guia, arrebatadoras revelações. Do outro, na multidão dos sem-rostos, no labirinto sombrio de vias infindas, no alvoroço ruidoso daqueles que quanto menos voz têm, mais barulho fazem, assiste-se a um delicado e quieto sinal.

Da banda de lá, a promessa eloquente e luminosa do Filho de Deus, Messias esperado, nascido entre nós. Da banda de cá, o silêncio feminino, de uma ressabiada mãe, guardando despretensiosa as altaneiras palavras, os inquietos semblantes, os curiosos olhares, os ansiosos tons de voz, sinais e arrepios de um Deus inesperadamente presente.

Do lado de lá, pastores ouvem um coro celeste e a voz do imponente Gabriel, a promessa gigante do Messias, tudo junto em um menino-deus. Do lado de cá, na incômoda estrebaria, no improvisado berço de uma manjedoura, apenas um bebê, embrulhado nos pobres panos que a todos os infantes plebeus envolve.

Entre a promessa cintilante e alvissareira e o seu pretenso cumprimento, uma viagem, uma despedida, um abandono e a salvação.

Sejam os sábios magos, ou os discriminados pastores, é preciso desnudar a esperança de trajes vultuosos, de expectativas de majestosos eventos. Importa esquecer o desejo crédulo de um potente Deus, ou de um irresistível Titan. O bebê é apenas mais um bruguelo. Chora estridente. Sorri gracioso. Suja fraldas. Esbaforido, suga os peitos maternos. Tão frágil, ao colo, suscita cuidado e reverência com a delicada vida.

Indispensável que seja apenas um bebê. Um nenê sem adjetivos, de tão imprescindível.

Deus de fraldas é de tirar o fôlego.

Quem quiser ver o prometido Filho de Deus, terá que desembaçar os olhos, superar o nervoso pigarro na garganta, respirar fundo e olhar de novo. Falar bem pouco, ou quem sabe se calar. E se converter aos pobres, aos esquecidos, aos sem-lugar, aos simples, àquele que não é mais do que o que menos é entre nós. Ele é um de nós. E esta é a sua glória. E esta é a nossa salvação.

Nunca mais o divino se confundirá com uma ficção. Não mais será um Deus refém de nossas abstrações e seus tédios e suas lonjuras e suas estéreis doutrinas; que quanto mais falam, menos dizem. Tanto descrevem, tanto escondem.

Um Deus nascido entre nós é um novo Deus.

Um Deus inesperado.

Maravilhosamente próximo.

Generosamente semelhante.

Graciosamente comum.

Ponderável.

Presumível.

Imitável.

Tão aqui.

Tão nosso.

Tão íntimo.

A criança é a mensagem.

Um Deus que entra em nossa vida desde a meninice é o mais crente de nós.

Acredita em recomeços.

Tem fé nos reinícios.

Adere aos nossos renascimentos.

O bebê é Deus dizendo: Faça como eu, recomece sempre que um novo início for a salvação.

Ele não é o outro que vem a nós.

É o menino que vimos crescer.

Não chega. Nasce.

Não se impõe. Entrega-se.

Não reivindica. Serve.

Não esmaga. Mistura-se.

Conta histórias para contar-se entre nós.

Não intima. Seduz.

E se assusta. É porque não contávamos que a salvação, a graça, o amor, a esperança estivessem logo ali, no berço pobre, na louca e hostil cidade, na outra esquina, ao alcance dos olhos, dos ouvidos, do colo.

Em um de nós.

Elienai Jr.

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